Apresentação geral extraída do prefácio de David Calderoni para o livro inaugural da Coleção Invenções Democráticas, projeto da Autêntica Editora em parceria com o NUPSI: Espinosa e a Psicologia Social – ensaios de ontologia política e antropogênese, de Laurent Bove.
A história da Coleção Invenções Democráticas conheceu um lance decisivo em 25 de outubro de 2008. Nesse dia, culminando a extensa e intensa agenda de encontros, conferências e aulas do filósofo francês Laurent Bove em São Paulo, reuniram-se militantes da educação democrática (Lilian Kelian), da economia solidária (Paul Singer), da justiça restaurativa (Maria Luci Buff Migliori), da filosofia espinosana (o próprio Laurent Bove) e do que viria a ser chamado de movimento da psicopatologia para a saúde pública (David Calderoni, Nelson da Silva Junior e Maria Lúcia Calderoni).
Num clima de grande amizade e de estimulante curiosidade, demos lugar ao desejo de dialogar sobre nossas afinidades e horizontes de cooperação. Logo no início da conversa – que teve por consequência a decisão de fundar o grupo Invenções Democráticas –, Paul Singer perguntou de que maneira a filosofia de Espinosa poderia efetivamente entrar em comunicação com as outras práticas ali presentes. Tendo a palavra sido passada a Laurent Bove, este expôs brevemente a posição espinosana em referência a uma declaração feita por Paul Singer num filme sobre a economia solidária[1]. Ali, Singer disse, com efeito, que o alimento da autogestão seria “a felicidade: as pessoas se sentem efetivamente muito mais felizes em não ter em quem mandar, nem quem mande nelas…”
Em sua interlocução, Bove tratou de afastar Espinosa da tradição que pensa a subjetividade isolada do mundo e como que fundada em si mesma:
Espinosa — ao pensar tanto o ser humano como a sociedade — pensa sempre em termos de corpo coletivo ou de multiplicidade. Ou seja, para ele, um corpo humano é desde logo um corpo comum no qual e pelo qual convergem e se reúnem múltiplas partes que agem juntas para formar um mesmo indivíduo (“se vários indivíduos concorrem para uma mesma ação de tal maneira que todos sejam a uma só vez causa de um mesmo efeito, eu considero a todos neste aspecto como uma mesma coisa singular”, escreve Espinosa na definição 7 da parte II de sua Ética). E esse corpo comum, que é uma “prática” comum múltipla e convergente, é por seu turno apreendido (e compreendido) num corpo sempre mais vasto (formando ele mesmo um “indivíduo de indivíduos” até chegar à Natureza inteira…).
Inserindo a psicologia individual na psicologia social, Laurent Bove apresentou então um postulado original:
Há uma palavra latina em Espinosa que é, acho eu, intraduzível: é o que Espinosa chama de hilaritas. Hilaritas: pode ser o contentamento [allégresse], pode ser a satisfação [gaieté], mas a tradução nunca é satisfatória. […] De fato, na Ética, Espinosa só fala de hilaritas no que concerne ao indivíduo humano, mas de minha parte eu penso que, de maneira totalmente “espinosista”, pode-se legitimamente transpor tal afeto ao plano do corpo coletivo… A hilaritas torna-se então o afeto democrático por excelência. […] A hilaritas é o sentimento (o afeto) que atravessa o tecido social justamente quando, por conta de sua boa auto-organização, este tecido social é afetado em cada um de seus elementos (ou de suas partes) “em igualdade” por um afeto de alegria. Isso significa que este tecido entrou num regime autônomo de sua potência de agir e de pensar, numa feliz produtividade de si mesmo.[2]
Desse modo, no diálogo entre a economia solidária e a filosofia espinosana, constitutivo do corpo comum do Grupo Invenções Democráticas, Bove enunciou duas das principais ideias presentes em seus escritos:
- a fundação continuada da sociedade baseia-se num pressuposto democrático universal: o desejo de não ser dominado por um igual-semelhante;
- convergindo também com a felicidade autogestionária postulada por Singer, encontra-se teorizado no nível ético individual por Espinosa um afeto que Bove transpõe ao plano coletivo democrático – a Hilaritas –, caracterizada como uma alegria equilibrada que atravessa constitutivamente o tecido social quando este opera em regime de auto-organização igualitária.
A meu ver, tal encontro de ideias permite num só lance fundamentar e exprimir a aposta viva e ativa do Grupo e da Coleção Invenções Democráticas: posto que toda existência social, qualquer que seja o regime político predominante, se alicerça num desejo e num afeto democráticos, sempre haverá base ontológica para inventar, promover e entrelaçar ações que permitam desenvolver democracia.
Qualifiquei como viva e ativa a aposta que embasa nossas Invenções Democráticas porque, no que tange às práticas que se agruparam sob este nome, penso que o movimento que compartem entre si e com o espírito da coleção homônima ora inaugurada caracteriza-se fortemente por uma firme contraposição a toda crença, voluntária ou involuntariamente niilista, que recomende a suspensão da práxis, isto é, dos pensamentos e das ações concretas visando à edificação de sociedades mais justas e equânimes.
Invenções Democráticas: o engajamento em maneiras criativas e solidárias de desenvolver autonomia e cooperação, onde a construção coletiva da liberdade acompanha a contraposição conjunta à lógica e aos efeitos da dominação — eis a posição ético-política que, a meu ver, nos reúne e com relação à qual as seguintes palavras de Bove demonstram sua enriquecedora convergência:
Compreendemos que, se o niilismo está na destruição do “comum a todos os homens” que, verdadeiramente, constitui a matriz da democracia, somente uma nova figura libertária da resistência, liberada da vontade assassina de dominação racional e cujo projeto seja o de “afirmar o homem em sua carne e em seu esforço de liberdade”, poderá tecer estes vínculos sociais de solidariedade constitutivos de uma vida comum autenticamente humana.
Referências
1. Intervista Paul Singer [Entrevista com Paul Singer] in http://www.youtube.com/watch?v=FbSMSeosqaI. ↑
2. No estabelecimento textual das falas deste encontro, eu e Bove colaboramos com Lívia Godinho e Mauricio Ayer que, ao lado de Moara Passoni, também integram o Grupo Invenções Democráticas. ↑